De um navio de guerra, um italiano
espreitava com uma luneta a cidade catarinense de Laguna, para fazer o
reconhecimento. Ele pensava nos tantos companheiros perdidos, nas tantas
agruras recentes, e nas lutas que ainda viriam. Sua tropa pretendia
tomar o lugar com pretensões revolucionárias, contra o Império
brasileiro. Mas o olhar de combatente rendeu-se a uma visão inesperada:
pelas lentes de vidro, o estrangeiro viu um grupo de moças a passear. O
rosto de uma das jovens o cativou de imediato. Antes de se dar conta de
que estava preso ao que via, acompanhou-a o quanto pôde, até ela sumir
de vista pelas ruas.
Tratou de desembarcar e foi até o lugar
em que vira a moça, ainda sem entender direito o porquê de tanto
fascínio. Procurou a jovem pelas redondezas, até que se viu obrigado a
desistir.
Interagindo com os cidadãos locais
simpáticos à causa pela qual lutava, recebeu de um deles o convite para
um café em sua casa. Cansado da viagem e um pouco frustrado por não ter
encontrado quem procurava, o combatente aceitou o convite. Uma boa
bebida quente e uma conversa em um ambiente mais confortável aliviariam
pelo menos um pouco seu desapontamento.
Assim que entrou na casa de quem lhe
convidara, o estrangeiro deu de cara com quem menos esperava – ainda que
esperasse mais do que tudo, sem o saber. Era justamente a garota que
vira do navio.
Ambos ficaram simplesmente parados, em
silêncio, entreolhando-se. O visitante quebrou o silêncio em italiano:
“Tu deves ser minha”, falou, antes que ele mesmo se desse conta.
Seria apenas o incomum início de mais
uma história de amor do século 19, não se chamasse o italiano Giuseppe
Garibaldi, e não fosse a jovem Ana Maria, chamada Anita pelos entes
queridos, uma das mulheres mais fortes e corajosas da história do Brasil
e da Itália.
Revoluções
Ana Maria de Jesus Ribeiro nasceu em
agosto de 1821 em Laguna, município da então província de Santa
Catarina, filha de descendentes de açorianos. Anita, como foi apelidada,
era a terceira filha do casal Ribeiro – depois dela, ainda viriam mais
sete.
Anita perdeu o pai quando entrou na
adolescência. Era uma época de patriarcalismo reinante, e mulheres pouco
podiam se expressar. Ao homem cabia o papel de provedor, e à mulher o
de não opinar. Por insistência materna, casou-se aos 14 anos com um
sapateiro, Manuel Duarte de Aguiar, para ser menos uma boca na família
de origem. Tempos difíceis, decisões difíceis. O casamento arranjado
durou apenas 3 anos, quando o marido se alistou no exército imperial e
abandonou a esposa, que voltou para a casa da família.
Quando Ana tinha 18 anos foi que
aconteceu a história acima, de Giuseppe, então com 32 anos, chegar a
Laguna. Ele lutava ao lado dos revolucionários que fundaram a então
recente (e breve) República Rio-Grandense, na província vizinha, e
aportava em Santa Catarina para ajudar a fundar a República Juliana, a
exemplo do Rio Grande do Sul.

A atração mútua foi intensa. Não tardou,
e a personalidade forte e independente de Anita pôde aflorar de vez.
Passou a lutar a partir daquele ano mesmo com o amado Giuseppe contra o
Império, pela libertação gaúcha, catarinense e de outros territórios.
Era outubro de 1839, e a lua-de-mel do
casal foi bem diferente das normais. Acompanhando Giuseppe no Itaparica,
imponente embarcação com sete canhões, Anita presenciou as agruras do
combate quando a Marinha atacou a embarcação nas proximidades de
Imbituba. Em novembro, participou ativamente da perigosa Batalha de
Laguna, transportando munições em um pequeno barco em meio ao fogo
cruzado. Vários combates depois, o casal passou o Natal em Lages, terra
de parte da família Ribeiro.
Amor em meio à guerra
Em janeiro de 1840, Anita mostrou que
não era apenas uma acompanhante à sombra do heroico marido. Ambos se
separaram sem querer em meio ao calor da Batalha de Curitibanos, em
Santa Catarina. Ela, que abastecia os soldados com munição, foi presa, e
chegaram as notícias de que Giuseppe morrera em combate. Entretanto, a
prisioneira mostrou pulso em meio à dor, causando a admiração do
comandante imperial, que acabou por concordar que ela fosse procurar o
cadáver do marido. Em meio ao cenário desolador, ela conseguiu um cavalo
e fugiu. Foi para Vacaria, no Rio Grande do Sul, em uma viagem de 8
dias, pois lá estavam reunidos os revolucionários. Lá, reencontrou o
esposo. Como ela pensava, Giuseppe estava vivo.
Após 8 meses, nasceu em Mostardas (RS) o
primeiro filho do casal, Menotti. Apenas 12 dias depois, soldados
imperiais cercaram a casa em que o casal Garibaldi estava. Anita fugiu a
cavalo com o bebê e se escondeu numa mata nos arredores da cidade, onde
Giuseppe a encontrou 4 dias depois.
Em 1841, o casal desligou-se do exército
rio-grandense e mudou-se com o filho para Montevidéu, capital do
Uruguai. A viagem foi difícil. Os Garibaldi receberam 900 cabeças de
gado bovino para um recomeço de vida, com o qual seguiram em tropa para
terras uruguaias. Chegaram ao destino somente cerca de 300 animais. Lá
conseguiram, pela primeira vez, embora por curto período, ter algo
parecido a uma vida normal. Casaram-se legalmente, e Giuseppe foi
nomeado comandante da pequena esquadra do país. Nasceram mais três
filhos, Rosa (1843), Teresa (1845) e Ricciotti (1847). Aos 2 anos, a
pequena Rosa morreu por causa de uma infecção na garganta, o que causou
grande sofrimento ao casal, mesmo já tão acostumado com a morte.
Em 1846, com os conflitos cada vez mais
constantes, Giuseppe tentou enviar Anita e os filhos para viverem com
sua mãe em Nice (então pertencente ao reino da Sardenha, que viria a
compor a Itália, e hoje pertence à França). Contudo, a corte italiana
negou-lhe o pedido. Após 2 anos, Anita e as crianças seguiram para Nice
com outros legionários italianos, e ficaram com os Garibaldi.

As crianças ficaram com a avó, e
novamente Anita retornou às viagens revolucionárias com o marido (1849).
Participaram dos combates que culminaram na proclamação da República
Romana, mas abandonaram Roma quando da invasão franco-austríaca à
cidade. O casal seguiu com 3,9 mil soldados na fuga, perseguidos por 40
mil combatentes adversários, sendo que outros 15 mil os esperavam ao
norte. Ainda assim, lutaram pela libertação da Itália.
Gravidez e fuga
Anita descobriu que estava grávida do
quinto filho. A gestação estava sendo muito difícil, e ela não queria
ser um peso para o marido. Insistiu com Giuseppe para ir a Nice passar o
resto da gravidez, deixando-o mais despreocupado na guerra. Seu estado
de saúde se agravou quando chegavam a San Marino, nos Apeninos. O
embaixador dos Estados Unidos na Itália lhes ofereceu refúgio, mas eles
não o aceitaram. Os soldados adversários eram milhões, e temiam a morte
ou morrer na cadeia, separados.
Descobriram que Anita havia contraído a
febre tifoide. Mesmo doente, continuava a fugir, com os austríacos em
seu encalço. Muito debilitada pela doença, ela começou a dar sinais de
que entrava em trabalho de parto.
Foi levada às pressas para uma fazenda
perto de Ravenna, onde mãe e bebê não resistiram. Era 4 de agosto de
1849, e Anita faleceu com apenas 27 anos de idade.

O impacto sobre Giuseppe não foi pouco.
Perdeu a grande companheira de sua vida, mãe de seus filhos, fiel
parceira de combate, numa intensa história que começara 10 anos antes,
quando a viu pela primeira vez sem querer, ao chegar a Santa Catarina.
Garibaldi
teve de fugir, sem poder acompanhar o sepultamento da esposa.
Exilou-se, e o corpo de Anita foi exumado cerca de sete vezes antes de
poder ir para Nice. O exílio levou o guerrilheiro para lugares como a
Suíça e os Estados Unidos. Ele viajou pelas Américas e quase lutou na
Guerra da Secessão norte-americana. Mais tarde, ele voltou à Europa, e
seria um dos maiores heróis da unificação da Itália, celebrado até hoje
em vários pontos da Velha Bota – e no Sul do Brasil. Morreu em 1882, aos
74 anos. Mesmo tendo casado novamente, pessoas próximas testemunharam o
grande impacto de Anita em toda a sua vida.
A Itália tem até hoje uma atitude muito
respeitosa em relação a Anita Garibaldi. Seus restos mortais
transferidos para Roma, e sobre seu túmulo foi erguido um grande
monumento equestre (foto ao lado), muito visitado por
seus conterrâneos. Dois municípios catarinenses foram renomeados em sua
homenagem: Anitápolis e Anita Garibaldi, e muitas cidades brasileiras
têm praças e ruas com seu nome, que está inscrito no Livro dos Heróis da
Pátria, no panteão da Liberdade e da democracia, em Brasília. Em
Laguna, o Museu Anita Garibaldi reúne pertences e referências à vida da
heroína.
Está previsto para 2012 o lançamento do filme ítalo-brasileiro
Garibaldi in America, roteirizado e dirigido pelo italiano Alberto
Rondalli, contando muito da história do valoroso casal.
Em suas memórias, relatadas ao escritor
Alexandre Dumas (da famosa obra “Os Três Mosqueteiros”), Giuseppe
Garibaldi relata aquele encontro inesperado em Laguna, ao aceitar ir à
casa de um habitante local para um café, quando se viu frente a frente
com a jovem que vira de longe, pelas lentes de uma rudimentar luneta:

"Entramos, e a primeira pessoa
que se aproximou era aquela cujo aspecto me tinha feito desembarcar. Era
Anita! A mãe de meus filhos! A companhia de minha vida, na boa e na má
fortuna. A mulher cuja coragem desejei tantas vezes. Ficamos ambos
estáticos e silenciosos, olhando-se reciprocamente, como duas pessoas
que não se vissem pela primeira vez e que buscam na aproximação alguma
coisa como uma reminiscência. A saudei finalmente e lhe disse: 'Tu deves
ser minha!'. Eu falava pouco o português, e articulei as provocantes
palavras em italiano. Contudo fui magnético na minha insolência. Havia
atado um nó, decretado uma sentença que somente a morte poderia
desfazer. Eu tinha encontrado um tesouro proibido, mas um tesouro de
grande valor.”
Por Marcelo Cypriano / Ilustrações: Fotolia, Santur
marcelo.cypriano@arcauniversal.com
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